Mas hoje tinha à minha disposição duas armas ocasionais que me fizeram vencer: a Sexta-feira Santa, um dia em que estamos mergulhados numa atmosfera de mais recolhimento e mais disponíveis para os exercícios penitenciais. Além disso, hoje é o aniversário da morte de João Paulo II, de quem recordo com emoção um gesto: a sua confissão da culpa da Igreja e o seu pedido de perdão. A quem tivesse dúvida ou perplexidade perante esse facto inaudito na história da Igreja, respondia: “Não temos de ter medo à verdade; a verdade far-nos-á livres”. Em sua memória e com o seu exemplo, disponho-me a partilhar convosco a minha última experiência da leitura do livro da Vida de Teresa.
Hoje de manhã, relia o capítulo 10. Sabemos que é um nó crucial entre a narração autobiográfica e a secção doutrinal dos capítulos seguintes. Podemos considerá-lo como uma introdução ao tratado da oração dos capítulos 11 a 21, tal como o célebre capítulo 22, sobre a Humanidade de Cristo, constitui a conclusão. A doutrina dos quatro graus de oração é como uma corda esticada entre dois pontos fixos: o meu eu e Cristo. A imagem pode ajudar-nos a compreender que, se faltar um dos dois pontos, a corda perde tensão, afrouxa e já não serve para “saltar”. E eu pergunto-me se não será isto o que nos acontece amiúde. A oração não está tensa, não é o lugar nem o tempo em que eu me estendo e mergulho nesse estrato mais profundo de mim mesmo, do mundo, da vida, onde Ele me espera.
Faz parte de uma experiência autêntica de oração o atravessar diversos limiares, passando do mais superficial ao mais profundo, do mais conhecido ao menos conhecido, e é tanto mais fundamental quanto o final é sempre o próprio centro da alma: a certeza de sermos amados. Quanto mais nos aproximamos deste centro mais ele nos atrai, até ao ponto de que a sua força vence cada uma das nossas resistências, e não nos resta senão abandonarmo-nos passivamente a ela.
Mas, qual é a estaca que não sustenta a minha oração de homem de hoje? A este respeito, tenho poucas dúvidas: a primeira estaca que a não sustenta é o meu eu. Teresa sabe bem que não se pode ser homem de oração sem uma estima de si próprio, não fundada em nós, mas no amor de Deus por nós. Por isso, o capítulo 10 insiste tanto na necessidade de não “acobardar o ânimo”, antes, pelo contrário, animá-lo e fortificá-lo:
“Pois, como aproveitará e gastará com largueza quem não entende que está rico? É impossível – a meu parecer –, dada a nossa natureza, ter ânimo para grandes coisas quem não compreende que é favorecido por Deus. É que somos tão miseráveis e tão inclinados às coisas da terra, que mal poderá aborrecer, de facto, tudo o que é cá de baixo e com grande desapego, quem não entender que tem algum penhor lá de cima” (Santa Teresa de Jesus, Livro da Vida, 10,6).
A Teresa não lhe bastam somente as “verdades da fé” para introduzir-se no caminho da oração. Tem necessidade de que o seu eu seja despertado e reforçado, porque, por natureza, é demasiado fraco e débil.
Se isto foi verdadeiro para ela, quanto mais o não será hoje para nós! Temos um medo grande de despertar o nosso eu, a nossa liberdade, com as suas potencialidades, mas também com as suas responsabilidades morais e espirituais. No nosso mundo desenvolvido e super-equipado, limitamo-nos, por medo, a viver o mínimo das nossas possibilidades. É uma forma de imaturidade, pela qual, talvez, sob as mentiras desprovidas de humildade, que Teresa inexoravelmente desmascara como um engano, tendemos a minimizar o nosso empenho e os nossos objectivos, para que tudo esteja sob o nosso controlo.
Se a nossa oração está em crise é porque nós próprios estamos em crise, a maneira de nos conhecermos e compreendermos. Só uma experiência poderá fazer-nos crescer, precisamente aquela experiência fundamental de que fala Teresa: “vir-me a desoras um tal sentimento da presença de Deus, que de nenhuma maneira podia duvidar de que estivesse dentro de mim e eu toda engolfada n’Ele” (10,1)"
[Frei Savério Cannistrà, OCD, Geral da Ordem]
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